quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

sonho e rizoma: diálogo sincero com jung II


As masmorras

O terreno é uma pequena península, um braço defeituoso que se estende até ao mar. A única passagem é visível apenas do topo da pequena coluna de pedras, dispostas de forma tão planeada e rígida que se assemelha a uma escolha aleatória do lunático deus de espinosa. Sabem, é que eu vivo no intermédio, nessa mal-humorada disposição de pedras onde abundam vestígios de melena que tornam o espaço insuportável e a lua emerge baixa, circular e vigilante.
Inexplicavelmente, eu não conheço os caminhos da minha casa. Cambiam todos os dias, durante o meu sono. Este espaço certamente alguém o terá imaginado, inviolado e perfeito, infinito. Sinto-me como aquele borges, um conhecedor abstrato do mundo. A verdade é que as pedras não permitem entrever nada mais para além da sua genealogia, essa é a realidade permitida. Deixa-me, todos os dias, com um desafio novo para vencer, como um qualquer passatempo de jornal. E assim é – nunca resolvi nenhum destes puzzles. Por vezes, fico com a sensação de que estou perto e entro numa corrida alucinada contra o sono e as pedras. Na maioria das vezes, desisto pouco tempo depois de enveredar por determinado caminho, de prosseguir determinada pista. Normalmente, deito o jornal ao lixo, quando encontro alimento suficiente para o corpo não desligar.
Eu estou sempre no intermédio e, como vos disse, a situação muda quase diariamente. Durante tempos vivi lá em cima, no cume da montanha de pedras, com vários companheiros aprisionados em celas. Foram tempos difíceis. Comíamos bichos e bebíamos gotas de água que escorriam pelas reentrâncias da estrutura de pedra. Nunca mais os vi desde o dia da minha fuga, mas recordo esses tempos com saudade porque existia esperança. Compreensível, afinal. As celas são o único espaço de onde é visível a passagem da península. Todos os dias perdia-me a olhar para ela e a imaginar infinitos cenários para o dia em que a atravessasse, como se fosse um dos objetos eternos de whitehead, um reino de possibilidades.
Desde o dia da fuga, nunca mais vi a passagem. Presumo que esteja lá ainda, se bem que no outro dia estava a ler uma história sobre uma península que, subitamente, se desintegrou do resto da terra e movimentava-se como uma jangada. Andei sobressaltado durante dias de insónia. Agora sosseguei. Afinal de contas, seria totalmente irracional e absurdo se essa ideia acontecesse precisamente a mim! Era o que mais faltava, eu, um ser mesquinho, totalmente inofensivo!
Mas deixem que vos fale dos labirintos de pedra. Em verdade, não são realmente labirintos no sentido académico do conceito. Mas assim perceciono estes absurdos espaços. São um símbolo, sim, e um claro testemunho da minha loucura. Normalmente, alucino-me a subir e descer por escadas imperfeitas, câmaras e antecâmaras cinzentas. Este espaço, aumenta-o a penumbra, o tempo, o meu desconhecimento, a solidão. Daí sentir que o meu mundo, este – isto! –, é um labirinto, do qual é impossível escapar, pois todos os caminhos, embora apontem para os diferentes quadrantes, seguem realmente para Roma, que é também o metro quadrado onde me deito a dormir.
Um dos labirintos mais recorrentes é o dos caminhos de espelhos. É realmente a única ocasião em que os pátios de pedras se tornam corredores flanqueados por enormes espelhos que não permitem mais nada se não a repetição infinita do meu ser e da lua circular. Esses caminhos resultam no duplicado simétrico do horror original. Parece que a palavra do alcorão se confirma: retiramos o teu véu, e a visão de teus olhos é penetrante. Tenho como crença que a existência dos espelhos é um erro, uma incompetente imitação de um outro lugar, num outro tempo. Esse erro é abominável porque reproduz e valida o labirinto e, no entanto, nunca consegui justificar a recorrência com que me assola. Será que a multiplicação da minha realidade que daí resulta leva também à proliferação deste labirinto ao longo dos dias?
Bem, de qualquer modo, ao cabo de uns meses compreendi com certa amargura que nada podia esperar da atitude passiva, mas sim das ocasiões em arriscava uma contradição razoável. O que me leva à minha grande teoria – o espaço, aqui, é realmente o tempo, uma espécie imaterial de sucessão de estados de espírito, instantes que carregam no seu interior, de modo sucessivo, cada um dos espaços mentais onde vivo. Sim, eu sei, é uma ideia patética, a única que me chega com significado. Nesse caso, o espacial não perdura no tempo, a metafísica é um ramo da literatura fantástica e a minha esperança é a de nietzsche.
Regulares, apesar de dispersos, são os sonhos em que vivo quando fecho os olhos no meu metro quadrado. Ao princípio, os sonhos eram caóticos; pouco depois, tornaram-se de natureza dialética, como se enquanto durmo aqui, estou acordado noutro lado. Quase imediatamente, sonhei com um coração a bater, um coração de homem que sonhava quando o sonhado acordou. Tentativa frustrada. O que eu queria mesmo era sonhar um homem, de vida completa, com tempo e espaços contíguos, com amigos, amor e alguma felicidade, mas também marés conturbadas que fizessem os dias de sol valer a pena. E, depois de sonhado esse homem, impô-lo à realidade. Se alguém lhe perguntasse o seu nome ou qualquer pormenor da vida anterior, não seria capaz de responder.

Nessa altura, talvez, já eu não saberia se existo num labirinto de pedras ou num de sonhos.


rafael

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